Os primeiros princípios e a construção do conhecimento verdadeiro

Faça engenharia reversa para problemas complexos.

Criatividade

Existem momentos em sua vida que você pensa como um autor coadjuvante, mas também existem chamados para que você assume o protagonismo e liberte o seu poder de criação. Abrace esses chamados 

Se tem uma coisa que pode te ajudar a desbloquear a sua criatividade e conectar o seu poder de imaginação, com certeza é aprendendo uma lógica que se tornará uma ferramenta para você reaprender a pensar por si mesmo. 

O pensamento de primeiros princípios (ou raciocínio a partir dos primeiros princípios) é uma das melhores maneiras de fazer engenharia reversa de problemas complexos e liberar possibilidades criativas. O propósito dessa técnica é quebrar situações complexas em elementos básicos. 

Raciocinar pelos primeiros princípios é útil quando: você está fazendo algo pela primeira vez; lidando com algo complexo; ou tentando entender uma situação problemática.  

É, basicamente, (re)aprender a pensar por si mesmo para desbloquear seu potencial criativo, passando de resultados lineares para não-lineares. Essa é uma das estratégias mais eficazes que você pode empregar para gerar soluções originais.  

Ironicamente, a melhor maneira de desenvolver ideias inovadoras talvez seja começar descobrindo fundamentos. Vai por mim: compreender os primeiros princípios de uma área é fazer uso inteligente do seu tempo.  

A lógica é simples. Sem o domínio consistente do básico (fundamentos), as chances de alcançar excelência nos níveis avançados são mínimas. 

O pensamento dos primeiros princípios não remove a necessidade de melhoria contínua, mas altera a direção dessa melhoria.  

Raciocinar pelos primeiros princípios é remover impurezas das suposições e convenções. Só o que resta é o essencial.  

Não se engane. Parece fácil, mas é bastante difícil de praticar. Nosso cérebro tem uma forte tendência de otimizar a forma ao invés da função.  

Para te dar um exemplo: mala com rodinhas. 

Na Roma antiga, os soldados usavam bolsas e sacolas de couro para carregar comida enquanto cavalgavam pelo campo. Ao mesmo tempo, os romanos tinham muitos veículos com rodas, como carruagens e carroças. Ainda assim, por milhares de anos, ninguém pensou em combinar a bolsa e a roda. 

Ao longo dos séculos, bolsas de couro tiveram usos específicos (mochilas para escola, mochilas para caminhada, malas para viagens). O zíper foi adicionado às bolsas em 1938. As mochilas de nylon foram vendidas pela primeira vez em 1967. 

Perceba que, apesar de ganhar melhorias, a forma da bolsa permaneceu praticamente a mesma. Até então, inovadores gastaram todo seu tempo fazendo pequenas repetições no mesmo tema. 

A primeira mala com rodinhas, por sua vez, só foi inventada em 1970, quando Bernard Sadow estava transportando sua bagagem em um aeroporto e viu um trabalhador rolando uma máquina pesada em uma derrapagem com rodas. 

Enquanto todos os outros estavam focados em como construir uma bolsa melhor (forma), Sadow considerou como armazenar e mover as coisas com mais eficiência (função). 

E é assim com muitas inovações. Em vez de uma melhoria da função central, ocorrem apenas ajustes no mesmo formato. 

Gostei da distinção que Tim Urban usa para explicar a diferença entre raciocinar pelos primeiros princípios e raciocinar por analogia. Segundo ele, é o que difere ser chef e ser cozinheiro. Enquanto o chef é aquele que inventa receitas (pioneiro, inovador), o cozinheiro precisa de uma receita (analogia). Ele pode até dar seu toque ou variar algo, mas sempre será um ajuste ao que já foi criado. O chef, por sua vez, entende as combinações de sabores em um nível tão fundamental que nem mesmo usa uma receita.  

Eis a diferença entre conhecimento verdadeiro e “saber fazer”.  

Mais adiante vou trazer outros exemplos de inovação, mas, antes, vamos voltar um pouco no tempo. Mais de dois mil anos atrás, Aristóteles definiu primeiro princípio como “a primeira base a partir da qual uma coisa é conhecida.” 

Assim, o pensamento dos primeiros princípios exige que você vá cada vez mais fundo até ficar apenas com as verdades fundamentais de uma situação.  

O filósofo e cientista francês René Descartes adotou essa abordagem no que hoje é conhecido como Dúvida Cartesiana. Nesse método, ele duvidava sistematicamente de tudo de que poderia duvidar, chegando às verdades puramente indubitáveis. 

Na prática, você não precisa simplificar todos os problemas até o nível atômico para obter os benefícios do pensamento dos primeiros princípios. Só precisa ir um ou dois níveis mais profundos do que a maioria.  

John Boyd, famoso piloto de caça e estrategista militar, criou um experimento mental que mostra o pensamento dos primeiros princípios de maneira prática. Acompanhe: 

Você tem três coisas: 

  • Uma lancha com um equipamento de esquiar acoplado 
  • Um tanque militar 
  • Uma bicicleta 

Divida esses itens em suas partes: 

  • Lancha: motor, casco de um barco e um par de esquis. 
  • Tanque: degraus de metal, placas de blindagem de aço e uma arma. 
  • Bicicleta: guidão, rodas, marchas e um assento. 

Agora, pense: o que você pode criar com essas partes individuais?  

Uma dica: a melhor solução não está onde todos já estão olhando. O pensamento dos primeiros princípios ajuda você a reunir informações de diferentes disciplinas para criar novas ideias e inovações.  

Reflita um pouco sobre isso. Eu conto a resposta do estrategista daqui a pouco.  

Algumas das ideias mais inovadoras da história resultaram dessa redução aos primeiros princípios. Com ela foi possível substituir uma das partes principais por uma solução mais eficaz. 

Foi assim que Johannes Gutenberg combinou uma prensa de rosca (usada para fazer vinho) com tipos móveis, tinta e papel para criar a prensa de impressão. Os tipos móveis foram utilizados por séculos até Gutenberg considerar as partes constituintes do processo e adaptar a tecnologia para um processo de imagem espelhada da letra colocada em uma matriz para dar forma à página do texto, tornando a impressão muito mais eficiente. 

A questão é que muito do que acreditamos se baseia em alguma figura de autoridade nos dizendo que algo é verdadeiro. Na infância, aprendemos a parar de questionar quando nos dizem “porque eu disse”, “porque é assim”, “porque eu mando”. Quando adultos, também paramos de questionar quando as pessoas respondem “porque é assim que funciona”.  

Fica implícito que o entendimento gera incômodo.  

Porém, não devemos ceder. Afinal, se nunca aprendermos a desmontar algo, testar as suposições e reconstruir, ficaremos presos no que as outras pessoas dizem, ou seja, no “é assim que as coisas sempre foram feitas”.  

Raciocinar com os primeiros princípios nos permite cortar dogmas e desvendar possibilidades.   

No fim das contas, tudo que não é uma lei da natureza é apenas uma crença compartilhada e – quase sempre – limitante.  

Agora sim, você já decidiu o que vai fazer com suas partes de lancha, esquis, tanque de guerra e bicicleta? 

A opção apontada por John Boyd é fazer uma moto de neve combinando o guidão e o assento da bicicleta, as esteiras de metal do tanque e o motor e os esquis da lancha. O exemplo também destaca outra característica do pensamento dos primeiros princípios, a combinação de ideias de campos aparentemente não relacionados (bicicleta, tanque e barco).  

Desconstrua e, depois, reconstrua. Destrinche uma situação em partes principais e, em seguida, volte a uni-las em uma forma mais eficaz.  

Vamos aos exemplos clássicos de como funciona o raciocínio de primeiros princípios. 

O BuzzFeed: Jonah Peretti fundou o BuzzFeed em 2006, depois de estudar a psicologia da viralidade. O site cresceu rapidamente e se tornou um dos mais populares do mundo. A fórmula hoje é conhecida. Ao invés de publicar artigos que as pessoas deveriam ler, o BuzzFeed publica aqueles que as pessoas querem ler. Peretti reconheceu os primeiros princípios da popularidade online (distribuição rápida, principalmente) e utilizou para fazer uma nova abordagem. De lambuja ele ignorou o SEO, criando conteúdo que humanos desejam compartilhar. 

A SpaceX de Elon Musk: Provavelmente Elon Musk seja a unanimidade em pensamento dos primeiros princípios. Um dos empresários mais audaciosos que o mundo já viu tem uma abordagem para compreender a realidade que começa pelo que é verdade e não pela intuição. Musk começa com seu desejo de construir um foguete. Em seguida, ele vai aos primeiros princípios do problema, como por exemplo descobrir do que é feito um foguete. Estudando, desvendando e provocando, ele percebeu que o único motivo pelo qual levar um foguete ao espaço é tão caro é que as pessoas estão presas a uma mentalidade que não segue os primeiros princípios. Com isso, decidiu criar a SpaceX e se aproxima cada vez mais do projeto de levar pessoas a Marte.  

Moral da história? Quando pegamos o que já existe e melhoramos, ficamos à sombra dos outros. É preciso recuar, nos questionar o que é, de fato, possível e eliminar as analogias, porque elas limitam nossas crenças e nos levam a ver o problema da mesma maneira que outra pessoa enxerga. 

O problema é que deixamos que os outros nos digam o que é possível.  

Pessoas que usam os primeiros princípios para pensar sobre os problemas preenchem um abismo que existe entre o que as pessoas atualmente veem (com pensamentos moldados pelos outros) e o que é fisicamente possível.  

É trabalhoso limpar a desordem e reconstruir do zero? Claro! Por isso poucas pessoas estão dispostas a fazê-lo. E também por isso as recompensas tendem a ser não-lineares. 

Para finalizar, vou trazer algumas maneiras de estabelecer os primeiros princípios na prática:  

  • Pense por si mesmo: a tendência humana para a imitação é um obstáculo comum ao pensamento dos primeiros princípios. Quando penamos no futuro, normalmente projetamos a forma em vez de projetar a função. Por exemplo, as pessoas que fazem a pergunta “onde estão os carros voadores?” focam na forma (objeto voador semelhante a um carro) em detrimento da função (revolução do transporte aéreo). Os pensamentos dos outros nos aprisionam se não aprendemos a pensar por nós mesmos. 
  • Desconfie das ideias “herdadas”: antigas convenções e formas anteriores aceitas sem questionamentos estabelecem limites para a criatividade. 
  • Decida se faz sentido: raciocinar a partir dos primeiros princípios nos permite sair da história e da sabedoria convencional. Quando você realmente entende os princípios, pode decidir se os métodos existentes fazem sentido.  
  • Analogias não podem substituir compreensão: embora seja mais fácil raciocinar por analogia, as melhores respostas são encontradas quando raciocinamos pelos primeiros princípios. Adaptar-se a um ambiente em mudança, lidar com a realidade e compreender e aproveitar oportunidades que os outros não podem ver são os principais ganhos. 
  • Elimine crenças limitantes: pensamentos como “há muita informação por aí”, “todas as boas ideias foram aproveitadas”, “precisamos nos mover primeiro” e “eu não posso fazer isso porque isso nunca foi feito antes” devem ser riscados do seu cérebro. 

Para te ajudar um pouco na busca pelo conhecimento verdadeiro por meio do pensamento de primeiros princípios, vou compartilhar, por fim, o Questionamento Socrático. Esse é um processo disciplinado para estabelecer verdades, revelar suposições subjacentes e separar o conhecimento da ignorância.  

A série de questionamentos impede que você confie em seu instinto (decisões e reações emocionais) e ajuda a construir algo duradouro. 

Etapas: 

  1. Para esclarecer pensamentos e explicar as origens de suas ideias, questione: Por que eu acho isso? O que exatamente eu acho? 
  1. Suposições desafiadoras:  Como posso saber se isso é verdade? E se eu pensasse o contrário? 
  1. Para buscar evidências, pergunte: Quais são as fontes? 
  1. Considere perspectivas alternativas: O que os outros podem pensar? Como posso saber se estou certo? 
  1. Examine consequências e implicações: E se eu estiver errado? Quais serão as consequências? 
  1. Volte às perguntas originais: Por que pensei isso? Estava correto? Que conclusões posso tirar desse raciocínio? 

Criatividade não é algo com que apenas alguns de nós nascemos. Todos nascemos criativos, mas, durante nossa formação, esse olhar pode ser tirado de nós.  

Pensar nos primeiros princípios é uma maneira de tirar essas vendas para entender, como disse Elon Musk, o tronco e os galhos grandes, antes de entrar nas folhas, ou não há nada para pendurá-las. 

O tempo todo pessoas estão fazendo coisas que nunca foram feitas antes.  

E você, o que está tentando realizar?